sexta-feira, 15 de maio de 2020

Wudang


Nome: Wudang
Editora: World XXI Soft Inc.
Autor: Ariel Ruiz
Ano de lançamento: 2020
Género: Acção
Teclas: Redefiníveis
Joystick: Kempston, Sinclair, Cursor
Memória: 48 K
Número de jogadores: 1

Preâmbulo


Há umas semanas atrás, o André pediu-me que lhe fizesse a review de um jogo novo - “este vais gostar de certeza”, disse-me ele. Eu não sou particularmente fã de escrever reviews, pois dão demasiado trabalho, e não consigo ser um crítico imparcial, se é que isso é possível. Acabo sempre com um enorme sentimento de culpa em relação aos autores do objecto de crítica. E dando-me a escolher, de longe prefiro estar na pele de programador do que de crítico!


Em boa hora o André me convenceu, pois pude experimentar um jogo como nunca via há muito tempo. Esse jogo é Wudang, de Ariel Ruiz (World XXI Soft Inc), e uma das entradas no concurso Bytemaniacos Basic 2020. E porque será que considero este jogo fora de série? Sobre isso falarei mais à frente. Para já poderão estranhar um pouco a forma como foi feita esta review, mas senti ser necessária em relação a um jogo que considero ter uma profundidade excepcional.

Wuxia


Em Wudang entramos de cabeça no mundo literário das artes marciais e da mitologia chinesa, conhecido por wuxia, que nos remete a algo que reconhecemos no ocidente, como sendo aventuras de capa e espada, nas quais os protagonistas enfrentam tiranos e corrigem injustiças, geralmente após grandes provações ou terríveis desafios.

Os heróis são mestres do wushu - conjunto de artes marciais chinesas que são conhecidas por kung-fu. Seguem o xia, o código de honra assente em valores como lealdade e justiça. Na literatura wuxia, os mestres são dotados de capacidades sobrenaturais que lhes permitem realizar feitos como saltos extraordinários ou terem resistência sobre-humana.

O wuxia foi a base dos primeiros filmes de kung-fu, produzidos em Hong-Kong no século passado.  Um estilo mais realista de kung-fu vingou no Ocidente pelas mãos de actores como Bruce Lee e Jackie Chan. Mas em 2000, o filme "O Tigre e o Dragão" de Ang Lee, leva o wuxia às grandes telas de cinema de todo mundo. Neste filme estão presentes vários elementos wuxia que também podemos encontrar no jogo Wudang.

Um dos protagonistas de "O Tigre e o Dragão".

O enredo


No final do século 13, Kublai Kahn, primeiro Imperador da dinastia Yuan, inicia uma perseguição ao Taoísmo - religião filosófica e milenar, mandando queimar os seus textos sagrados, e convertendo pela força, os monges do templos taoístas das montanhas de Wudang. Assim favorecia a rival religião budista, que havia conseguido um ascendente de influência sobre o imperador.

O nosso herói, Qi Wen Wei, monge taoísta e mestre de wushu no Templo das Nuvens Roxas (hoje também conhecido como Palácio Zixiao), escapa ao assalto do templo pelos soldados do Imperador. Pior sorte teve o seu melhor amigo e colega monge, que foi atirado para as catacumbas por se recusar converter ao budismo.


Templo das Nuvens Roxas.
Como a lealdade é um dos valores fundamentais do Taoísmo, Qi Wen Wei retorna ao templo com o propósito de resgatar o amigo, contando apenas com a sua mestria nas artes marciais e a sua espada jian.


Qi Wen Wei à entrada do templo.
É notório o cuidado de Ariel Ruiz na criação do enredo. Podemos encontrar vários elementos wuxia: um venerável mestre (o honrado Qi Wen Wei), que pelo seu código de honra, enfrenta o Imperador para salvar o seu melhor amigo.

As referências à história e cultura chinesa também se destacam, por exemplo, na rivalidade entre Taoísmo e Budismo e nos estilos contrastantes do kung-fu: a ferocidade do wushu externo ou “duro”, praticado pelos monges budistas, e a agilidade do kung-fu interno ou “suave”, ensinado nos templos espalhados pelas montanhas de Wudang, lugar sagrado do Taoísmo.

Montanhas Wudang 


Templo no topo das montanhas Wudang.
As montanhas Wudang, berço do Taoísmo, guardaram centenas de templos, pagodes e santuários nas suas encostas. Embora muitos destes edifícios tenham sido derrubados durante a dinastia Yuan, vários resistiram até aos nossos dias, onde ainda se pratica, por exemplo, Tai Chi Chuan  seguindo tradições centenárias.


Wen Wei contemplando os telhados do Palácio Zixiao. 


Wudang Quang e Wudang Sword


Como já foi referido, nos templos de Wudang pratica-se o Wu Shu interno, conjunto de ensinamentos, treinos e exercícios, que visam o cultivo do Qi (energia interna), da essência e espírito no corpo humano. Os métodos de combate do Kung Fu de Wudang também contemplam a habilidade com armas, como a Wudang Sword, técnica do manejo da espada recta chinesa, Jian. A vida do nosso herói, Qui Wen Wei, dependerá grandemente da sua espada!

“As armas são ferramentas pouco auspiciosas;
Devendo apenas ser usadas como último recurso.”


Kublai Kahn


Neto de Genghis Kahn, e o primeiro imperador mongol da China, Kublai desde novo sentiu-se atraído pelo budismo. A sua ama de criação era budista e vários dos seus conselheiros chineses mais próximos também o eram. O imperador favoreceu o budismo de variante tibetana, ao ponto de esta tornar-se bastante influente no estado chinês.



Kublai, o Imperador mongol.

A grande rivalidade entre taoístas e budistas levou a que Kublai ordenasse a conversão forçada de todos os monges dos templos taoístas ao budismo.


Missão


E depois desta introdução aos vários elementos da história de Wudang, passemos ao jogo propriamente dito. Algures nas catacumbas do templo, encontra-se o nosso amigo, enclausurado numa cela, para a qual temos que encontrar uma determinada chave. Teremos que explorar as salas e áreas circundantes do templo, algumas delas inacessíveis por portas trancadas, e cujas chaves estão na posse dos guardas imperiais espalhados pelo complexo, que não hesitarão em atacar Qui Wen Wei.   


Amigo de Wen Wei, preso nas catacumbas.
O jogo assenta essencialmente em duas mecânicas: exploração e combate. Tal como um herói num conto wuxia, possuímos habilidade quasi-sobrenaturais, como a habilidade de efectuar longos saltos em qualquer direção ou de subir paredes com uma facilidade felina.

Wen Wei corre parede acima!


Combate


Demonstração de Wudang Sword.
A mecânica de combate é accionada quando o inimigo nos avista e este aproxima-se para atacar. Neste momento, o nosso herói desembainha a sua jian (espada), e inicia-se um duelo até à morte, que consiste em estocadas e bloqueios de defesa superiores e inferiores. É essencial que estar atento à postura do adversário para se antecipar e defender a estocada adversária.


Estátua de Buda impávida perante um duelo mortal em Wudang.

Sobrevivendo ao duelo, recebemos o Qi do adversário tombado. Também poderemos encontrar nos despojos da luta, uma chave que nos permitirá entrar em áreas restritas do templo. O nosso nível de Qi está representando pelo símbolo de Yin & Yang. A energia vital os nossos adversários é representado, convenientemente, por uma face demoníaca.

Além dos guardas, teremos de enfrentar alguns dos feiticeiros do Imperador. Ao contrário dos guardas, estes mágicos lançam projécteis de energia negativa que teremos de defender com a espada.

Um feiticeiro aguarda por Wen Wei.


Exploração


O templo ergue-se sobre um complexo de subterrâneos e armazéns de chá, que deve ser explorado minuciosamente de modo a obtermos a chave da cela do nosso amigo prisioneiro.

No interior do templo.
Ao avançarmos no jogo podemos encontrar alguns mini desafios que não sendo obrigatórios para o término da nossa missão, podem aumentar generosamente o nosso Qi, particularmente depois de algum duelo difícil.

Armazém de chá.
Um desse mini jogos é um (fictício) Arkanoid chinês. Reza a lenda que foi criado pelos monges shaolin para combater o tédio da clausura, e consiste em guiar uma bola Baoding com duas canas de bambu, de modo a derrubar uma série de tijolos. Ao mesmo tempo, temos que evitar que a bola não toque demasiadas vezes em dois demónios que parecem obstinados em estragar o prazer do jogador.


Arkanoid Chinês!
Outro puzzle opcional pode ser encontrado num armazém de chá, debaixo do templo, e habitado por ratinhos, que se alimentam dos mantimentos armazenados. Cada roedor têm uma queda por um petisco em particular, e devemos usar isso em nosso favor, de modo que um deles consiga encontrar uma poção de Qi perdida algures num pequeno labirinto.

Três ratinhos - um deles deverá chegar à poção.


Tao - o Caminho para a perfeição


Chego então à parte final com a pergunta com que comecei esta review: o que torna Wudang um jogo fora de série? Simples, é implementado integralmente em Sinclair BASIC, sem recorrer a código-máquina ou a compiladores. Apesar disso, Wudang não aparenta ser mais lento que muitos jogos programados em código-máquina. A animação, apesar de baseada em caracteres (8x8 píxeis) é suave e os ecrãs são desenhados rapidamente.

E não bastasse isso, os gráficos são absolutamente fabulosos, desde os detalhes arquitectónicos do templo até às magnificas árvores das montanhas de Wudang. E tudo isto embutido, de alguma forma, no programa em Sinclair Basic!


As magníficas árvores de Wudang!
Mas de onde saiu Wudang? É um remake de Kung Fu 2, também em Sinclair BASIC, do mesmo Ariel Ruiz, que em 1991 procurou homenagear Saboteur. Entre Kung Fu 2 e Wudang vemos um salto abismal, tanto do ponto de vista técnico como do enredo. Wudang herdou a temática de kung-fu, mas foi mais longe, ao abraçar o género wuxia e incorporar a filosofia taoísta. Resultou num conjunto coeso de elementos históricos, filosóficos e estéticos que combinam bem entre si.


Kung Fu 2, a inspiração de Wudang.
E não bastasse a complexidade do enredo, somos brindados nas instruções com uma pequena observação de Ariel, aparentemente irrelevante para o jogo em si, mas que elevou o jogo a um universo maior. Pois diz a nota que a figura histórica do imperador Kublai Kahn terá sido influenciada pelo príncipe Kulkax, um ditador do século 30, que tenta destruir a linha temporal do Taoísmo. Isto para impedir que este se transforme na filosofia dominante da Humanidade, e atrapalhe os planos de conquista de Kulkax, o principal antagonista no shooter Redshift (jogo também de Ariel). Embora não sendo essencial, esta ligação enriquece o mundo de Wudang!

Kulkax, a mente diabólica do futuro.
Não há dúvida que a trama de Wudang tem uma certa complexidade, mas a jogabilidade não lhe fica atrás. O controlo tanto pode ser por teclado como por joystick. De referir que o jogo, além de permitir teclas redefiníveis, também identifica teclas premidas em simultâneo, fundamental no controlo direcional dos saltos.

A exploração do mapa torna-se aprazível, com os saltos mirabolantes de Qi Wen Wei, e traz-nos reminiscências do personagem de Legend of Kage "voando" pela floresta.

Mas o ponto forte na acção é o combate, que acaba por contrabalançar o tédio que pode surgir num jogo exploratório. E que bem que está implementado!  Aparte das diferênças óbvias, lembra e muito, os combates de Prince of Persia. Há um componente aleatório que torna cada duelo emocionante.

Os três níveis de dificuldade crescente não diminuem o interesse pelo jogo, pelo contrário, torna os duelos bem mais desafiantes, obrigando a uma estratégia de preservação de Qi. E também damo-nos conta da importância dos mini-desafios, que podíamos ter desprezado num nível de dificuldade menor.

Ainda em relação aos duelos, há um em particular que me chamou a atenção. Algures na área exterior, existe uma floresta de bambú onde se esconde um guarda. Propositado ou não, certamente lembra uma cena clássica de "O Tigre e o Dragão". Mais um pequeno detalhe que enriquece o jogo!

Duelo na floresta de bambú.

Visão familiar de "O Tigre e o Dragão".
Filosofia ou religião, o Taoísmo busca a essência do ser e a harmonia com a Natureza. E parece que Wudang encontra-se nesse caminho: o enredo, a jogabilidade, a arte gráfica e o componente técnico, conjugam-se num equilíbrio entre forças e fraquezas.

Ariel Ruiz atinge um nível de mestria na arte de programar em Sinclair BASIC, tirando da cartola todos os truques de optimização conhecidos (alguns já aplicados em Max Pickles), bem como  inéditos resultando numa obra-prima de programação, que só poderia vir de alguém com um conhecimento profundo do ZX Spectrum.

E não só de criatividade e génio é feito o jogo, também de muito trabalho árduo, por exemplo, para incluir os dados do mapa numa única variável de 16K - loucura! 

É, sem dúvida, o meu candidato favorito a vencer o concurso Bytemaniacos Basic 2020, na categoria de BASIC puro. Se bem que também faz bonito ao lado de jogos compilados!

Mas independentemente de quem ganhar o concurso, Wudang já tomou o seu lugar no pódio da excepcionalidade. Tivesse sido programado em código-máquina e provavelmente teríamos mais um sucesso,  de entre muitos que têm surgido recentemente. Mas o ter sido programado com um esmero que raramente se vê nos dias de hoje, e puxando ao máximo os recursos limitados do interpretador Sinclair BASIC, eu sinto-me na obrigação de atribuir nota máxima.


“Refinar a saliva em essência;
Refinar a essência em Qi;
Refinar o Qi em espírito;
Refinar o espírito e retornar ao vazio;
Refinar o vazio e unir-se com o Tao.”

4 comentários:

  1. Uau, fantastico jogo !! Show de bola, digo, de jogo !
    O mesmo foi disponibilizado para download ou é vendido ? Poderia fornecer o link ?

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    1. Escrevi tanto que esqueci o link!
      Está disponível aqui:
      https://worldxxisoft.itch.io/wudang

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  2. Felicidades por este impresionante juego y la fantástica "review" de Planeta Sinclair. No dejais de sorprenderme siempre con sorpresas como ésta. Larga vida al Spectrum!

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    1. Obrigado Oscar! :) A review também foi publicada na Revista Espectro nº6 com uma mapa e um walkthrough exclusivos!

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