O João respondeu de forma clara: a produção nacional não existe por vários factores, um deles sendo a falta de legislação de direitos autorais, o que elimina qualquer possibilidade de se investir, de forma profissional, neste mercado. É feita a menção à legislação que viria entrar em vigor dentro de poucos anos, em 1992. Como esta edição da Micromania é de 29 de julho de 1990, a pirataria ainda seria predominante por mais algum tempo.
Lembro-me claramente de quando li esta Micromania. Já nessa época, eu tinha o interesse em seguir a área de programação de jogos, e confesso que fiquei um pouco apreensivo, ao notar a dificuldade em Portugal se firmar nesta área. Como o João disse, as poucas produções nacionais que existiam, eram amadoras e de distribuição caseira (havia a excepção que confirmava a regra: Alien Evolution). Também recordo que quando a legislação anti-pirataria entrou em vigor, e as lojas piratas desapareceram do mapa (entre 1992 e 1993), a indústria portuguesa começou a despontar nos PCs, precisamente com a origem no núcleo de Portimão, o mesmo de Alien Evolution. Nascia a Portidata que viria a fazer a alegria dos jogadores...
Eu acredito que a pirataria foi uma faca de dois gumes. Por um lado era difícil competir com lojas que copiavam os jogos descaradamente, muitas vezes com os piratas a entregar cópias de má qualidade, sem manual nem caixa. Por outro lado a pirataria teve um efeito "democratizador", abrindo as portas da micro-informática a muitos jovens que tiveram acesso a programas e jogos que não poderiam adquirir pelo seu preço elevado.
Terá sido a pirataria, o factor determinante para anular o potencial de uma indústria de videojogos nos anos 80? Eu acredito que teve o seu peso, mas o descaso crónico que a sociedade portuguesa sempre teve em relação às artes e outras atividades culturais também causou estragos. Senão fosse assim, a partir de 1992 teria ocorrido um "boom" de produções nacionais, o que não aconteceu. Lembro-me que os jogos portugueses comerciais contavam-se pelos dedos, e as poucas produções amadoras resultavam de participações em competições de programação de jogos, patrocinadas por publicações, como por exemplo, a saudosa Revista Spooler. Resumindo, Portugal passou novamente ao largo...
É uma opinião polémica? Eu admito que sim, mas vejamos os nossos colegas de outras áreas criativas, como a banda desenhada, e o quão difícil era (e ainda é) publicarem as suas obras em Portugal. Há também a minha experiência (anedótica, admito) na universidade, onde cursei engenharia informática, precisamente com a intenção de aprender programação e entrar na indústria de videojogos (que não existia). Lembro-me das caras de tédio de professores quando tentava abordar temas relacionados com a programação de videojogos. Formei-me no início do milénio, e o meu sonho morreu. Fui trabalhar para a informática na área de seguros e banca.
É preciso salientar que desde então muita coisa mudou. As faculdades portuguesas já focam no conteúdo de produção de videojogos, temos empresas de videojogos nacionais, e também estrangeiras que cá se implantaram. Os criativos são mais valorizados na indústria e na academia. As pessoas da indústria encontram-se e organizam-se eventos. Portugal já compensou muito do seu atraso. Mas se o desprezo que a sociedade brindava às artes foi negativo, a falta de talento nunca foi um verdadeiro problema para o nosso país.
Se há algo que podemos concluir com as preservações do Planeta Sinclair, é que muitos jovens, por carolice e paixão, programaram jogos que, em outros lugares ou circunstâncias, teriam tido potencial comercial. Basta ver a conversão portuguesa do City Connection, recuperada recentemente. Se derem uma vista de olhos pelos vários fóruns internacionais, os elogios são unânimes. O jogo, na época certa, teria sido um sucesso estrondoso.
Ora, basta ver também o engenho português em outras áreas ligadas à computação. Exemplo: o que foi desenvolvido pela Timex portuguesa, que muitos informáticos e electrotécnicos desconhecem. No entanto, não é a mim que cabe contar essa história, há um museu em Cantanhede que aglutina a história desse polo de R&D e que merece ser visitado...
Bom, caro leitor, se leu tudo até aqui, agradeço-lhe a paciência e deixo-lhe o link da digitalização realizada pelo Miguel Brandão!
Nota: esta edição também conta com a participação de uma leitora - isto será tema de conversa com o João para um evento a ser anunciado nas próximas semanas.
Muito boa análise. E sim, a pirataria não explica tudo, como se viu a partir de 1992.
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ResponderEliminarUm facto curioso é que as próprias revistas eram coniventes com a pirataria de videojogos. Na edição n.º 54 do Microse7e (1987), um leitor tece críticas sobre como este suplemento estimulava a venda e a troca de programas duplicados:
Eliminar"Gostaria de criticar a vossa posição no que concerne à pirataria. Eu penso que é uma vergonha que o suplemento de informática mais lido do País, fomente a pirataria através da secção de anúncios, onde já se viu pessoas e clubes (alguns) a venderem jogos a 20$00 e 30$00?!!! (...) A revolução dos direitos de autor deve começar por cima, pelas estruturas mais importantes (as publicações de informática). Se assim não for, será muito difícil a sua concretização- é que, por este caminho, haverá muita gente com mais de 500 jogos, o que de certa maneira impossibilita que os direitos de autor se implantem com sucesso, pois quem tem tantos jogos, muito dificilmente paga 500$00 ou mais por um original (...) Será que nesta matéria em que começamos ao mesmo tempo que os ingleses e espanhóis teremos de ser também os últimos? Será que Portugal tem que ser o País da Europa mais atrasado em tudo?! E de quem é a culpa? Neste caso é da pirataria oficial (as lojas). Mas também de quem as apoia e fomenta nas suas páginas essa mesma pirataria" (Retirado da seção “A palavra do leitor”, p. 2).
No Correio da Manhã, o responsável pela secção "Os Jogos no Computador" várias vezes deixava escapar, muito chateado, que não fazia melhores análises porque as versões dos jogos que lhe chegavam em mãos (piratas obviamente) estavam incompletas ou danificadas. :)
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ResponderEliminarÓtimo artigo, Filipe. Adoro este tema! No meu livro (Pensar o Género a partir dos Jogos Digitais), há um capítulo sobre a pirataria de videojogos. Questiono se a pirataria é destruidora ou criadora de novas formas de uso das tecnologias? A partir da análise de conteúdo do Microse7e e da Mini Micro's e das entrevistas que fiz, verifiquei que a pirataria nos anos 80 permitiu a democratização do acesso ao software. Esta característica prende-se com as questões de acessibilidade a produções estrangeiras que, na altura, não tinham representação oficial em Portugal, pelo que a única forma de acesso a estas produções era através da pirataria. A pirataria também está relacionada com a diminuição dos custos de venda e produção de cassetes de jogos, democratizando o acesso a essas novas tecnologias para pessoas com menos recursos económicos. Também permitiu que os jogos digitais chegassem a indivíduos de localidades mais distantes dos grandes centros urbanos nacionais, onde normalmente ficavam as lojas de informática. Algo muito semelhante a isso aconteceu em outros países da Europa, como a Finlândia e a Espanha, e fora da Europa, como em alguns países na Ásia e na África, como a Nigéria. Na Finlândia, por exemplo, a pirataria de videojogos começou a se desenvolver como uma forma cultural em meados da década de 1980. Neste país, mesmo depois que os mercados de computadores foram estabelecidos nas décadas de 1980 e 1990, a pirataria de jogos continuou e se desenvolveu como uma das subculturas dos programadores amadores. No meu livro, destaco também a importância da pirataria de software para o desenvolvimento técnico dos primeiros especialistas em desenvolvimento de jogos digitais em Portugal, quando o acesso ao conhecimento nesta área era escasso. Também analiso como a venda de jogos piratas, embora paradoxal, foi um fator relevante para entender o nascimento da indústria portuguesa de jogos digitais. A falta de legislação sobre a venda de software e direitos autorais permitiu que as lojas especializadas e não especializadas se tornassem locais legítimos para distribuição e venda dos jogos pirateados. Um ponto positivo da pirataria é a possibilidade de preservação de algumas produções por meio da criação de arquivos de grande porte que, muitas vezes, as empresas, e as próprias editoras, proprietárias dessas produções, não conseguiram manter. Há outra característica da pirataria que precisa de ser mais estudada em Portugal. Refiro-me à criação de demos multimédia geralmente associados à arte do computador, que é a base da chamada demoscene.
Obrigado Luciana! :) Obviamente, o meu testemunho é bastante pessoal, é a minha vivência, mas nem se compara com a tua investigação (a qual dei um pequeníssimo testemunho). Eu vivi a época e assisti ao fim da pirataria, inclusive, e acho que também já te contei como as lojas piratas deixaram de ser ponto de encontro, para se tornarem lugares de visitas clandestinas! Quando eu, acho que em 1993, tive que marcar por telefone uma ida a uma loja de Cedofeita, para me encontrar com o dono a um horário marcado, tudo à porta fechada, pensei, isto não é para mim! Um ano e meio antes, ainda era tudo à descarada! :) Quanto à pirataria ter sido o carrasco da indústria portuguesa, creio que também já falei isto contigo, acho que a questão é mais profunda e transversal à forma como as indústrias criativas eram vistas em Portugal. A legislação veio, mas os anos 90 foram relativamente pífios em relação à produção nacional de jogos (as produções multimédia em CD-ROM foram melhores, mas isso já entra no software educativo onde a Porto Editora foi muito forte). Já a tradução e localização dos jogos para a realidade nacional, essa sim foi crescendo. Ainda me lembro quando em 1994 (ano que tenho muito presente na minha memória) a Portidata lançou o primeiro jogo com tradução oficial para a língua portuguesa... Até delirei, foi um marco na época!! :D :D
EliminarAinda sobre o acesso que a pirataria privilegiava aos que não tinham recursos, posso contar-te a minha experiência na BGS. Encontramos pessoas de gerações mais velhas, de todos os extratos sociais, que guardavam as mesmas memórias dos mesmos videojogos, apesar das suas condições sociais diferentes. Certo dia, quando era feita revista na entrada do expositor, um dos seguranças, um senhor mais velho que os restantes seguranças, sorriu quando reconheceu o Atari! Provavelmente, ele não teria condições de pagar um ingresso da BGS.. Mas ali estava um gamer dos anos 80!
No Brasil, tive acesso a jogos, músicas e filmes incríveis por causa da pirataria, Quando eu era criança (nos anos 80) ter um computador era um luxo. E como mulher, era ainda mais difícil, pois computador era um "brinquedo" masculino. Imagina o que era jogar nesse contexto. Ui, era impossível. Acho que é por isso que essas histórias me fascinam. É como se eu pudesse voltar no tempo e me ver como participante/ jogadora. :)
ResponderEliminarBoa ou má a pirataria foi e será algo que faz parte da nossa história,se alguns beneficiavam com a sua proliferação outros tinham acesso a software que , provavelmente,nunca iriam ter se fossem vendidos a preços editoriais na altura
ResponderEliminarPara mim a pirataria é como ir a farmácia e comprar um medicameyde marca ou genérico,de salientar que os títulos que apareciam em Portugal na maioria das vezes não eram lançados originais pelas editoras ou raramente cá chegavam.talvez devido a fatores externos como preços de importação,contratos com as empresas produtoras ,tempo de espera,etc .
Recordo me que numa discográfica estive um mês ou mais para receber um CD de música que não havia cá..
E claro também a nossa legislação não contemplava a pirataria como crime...