Virgulino Ferreira da Silva, vulgo "Lampião", foi o bandoleiro brasileiro mais famoso do sertão nordestino - uma terra agreste, isolada e austera, massacrada por um clima seco, pontilhada por uma vegetação rasteira e espinhosa.
Lampião é também o ícone do cangaço: manifestação de dinâmicas sociais no nordeste brasileiro, de revolta à miséria e descaso do poder público, num contexto de extrema violência e ínumeros atos de vingança entre opressores e oprimidos.
Virgulino Ferreira da Silva, o "Lampião". |
Cangaceiros nos seus trajes característicos. |
Uma vida intensa que lhe granjeou ódios de alguns, e a admiração de outros, e que terminou violentamente às mãos de uma força volante de policiais militares, uma de muitas que os perseguiram por esses territórios agrestes. Os cangaceiros sempre escaparam, porque conheciam melhor o terreno, e não era incomum serem auxiliados por couteiros e populares. Mas o dia da morte da Lampião eventualmente chegaria e levaria (literalmente) a sua cabeça.
Procura-se Virgulino Ferreira! |
Foi em 1938, algures na fronteira entre os estados de Sergipe e Bahia, que o bando de Lampião sofreu uma emboscada quando estariam a dormir num dos seus esconderijos. O ataque foi rápido e certeiro: Lampião, a sua companheira, mais uns quantos cangaceiros cairam sob as balas. Como ainda era costume na época, as suas cabeças foram decapitadas e levadas para serem exibidas como troféus pelos vários estados do nordeste brasileiro.
O corpo decapitado de Virgulino jaz na sua sepultura. |
E aqui começa o Purgatório de Virgílio, ou melhor, de Virgulino, o nosso "herói" (recém-sepultado) que terá que encontrar a sua cabeça, perdida algures numa realidade purgatória, na qual deverá expiará os seus pecados de uma vida violenta a qual foi forçado a seguir.
Um crânio de boi é o substituto temporário para ocupar o lugar vazio entre os ombros e, como Virgulino logo descobrirá, é também uma excelente arma de arremeso, embora não se compare à sua Winchester que deixou no seu último e derradeiro esconderijo.
Uma caveira de boi servirá por agora! |
O peregrino que parece conhecer bem os cantos do Purgatório, guiará Virgulino com mensagens metafóricas carregadas de simbolismo religioso, oferecendo preciosas dicas sobre relicários que o cangaceiro decapitado deverá recolher para progredir no seu purgatório pessoal.
Virgulino encontra o Anjo da Agonia e o Peregrino. |
Perto do peregrino encontra-se o Anjo da Agonia, o mesmo que apareceu a Jesus na cruz e que, da mesma forma, revigorará o espírito de Virgulino e apagará todas as sevícias sofridas no Purgatório. Bom.. Talvez a história não seja bem assim como eu a contei. No entanto, tal facto será indiferente na procura de Virgulino pelo descanso eterno.
Este jogo é a segunda produção do autor independente Paulo Andrés, o mesmo que no ano passado nos trouxe Devwill Too ZX. E como já é apanágio deste criador brasileiro, trata-se de mais uma obra carregada de sincretismo artístico, conjugando cultura regional com literatura e técnicas de cariz popular. A seu tempo abordaremos nesta análise cada uma dessas influências.
Ao longe, um item aparentemente inalcançável. |
A mecânica deste "metroidvania" é, por si mesma, um purgatório digital auto-contido, no qual o progresso requer resgatar itens, sistematicamente um após o outro, e que permitirá adquirir novas habilidades ou abrir novas áreas, não raras as vezes obrigando a recuar no mapa para o ponto em que começamos.
Quem conhecer bem o género irá ambientar-se naturalmente a este jogo que amadureceu em relação ao primeiro de Andrés. Não só temos maior variedade de inimigos, como também precisamos enfrentar quatro chefes, representações de elementos que Lampião encontrou em vida, como a cobra coral que rasteja pela caatinga, ou o "macaco", alcunha dada aos volantes que fugiam aos pulos de tanto medo de Lampião. Ou seja, tudo no Purgatório tem uma razão de ser, há uma origem que pode ser rastreada do mundo etéreo até à nossa realidade.
Também a dificuldade deste jogo aumentou consideravelmente. Enquanto que o homúnculo de Devwill fazia do seu salto a sua maior arma, neste Purgatório nem todos os inimigos são facilmente neutralizados, e caso percamos a nossa caveira de boi, estaremos indefesos até a recuperarmos.
O "macaco" - o primeiro grande adversário. |
A estética é condizente com o ambiente sacro-religioso deste Purgatório: igrejas, ossos, relíquias, anjos. A cor vermelha sob fundo preto, com o branco a recortar as figuras está a gritar por Sin City de Frank Miller. Não fosse o purgatório uma "cidade" de expiação de pecados dos recém-arrependidos. Uma decisão artística que combinou muito bem com o tema do jogo.
Outros desalmados sem cabeça... |
As músicas reforçam o ambiente lugubre do purgatório, os efeitos sonoros são minimalistas mas funcionais, e no final do jogo somos presenteados com uma reprodução de Asa Branca, a conhecida música do compositor e cantor Luiz Gonzaga do Nascimento, o maior divulgador da música nordestina e que, na sua juventude, também esteve no sertão mas como soldado. Apesar do outro lado da barricada, admirou Lampião ao ponto de adoptar o traje do cangaceiro na sua carreira musical.
E as influências não se ficam por Frank Miller, pela Divina Comédia ou pelo contexto histórico do cangaço. O nordeste brasileiro é um fulcro de criatividade e cultura, com raízes locais e enxertos coloniais, não tivesse sido esta região, uma das que maior contacto teve com a colonização portuguesa. Dessa infusão surgiu uma cultura rica, própria e plena. Ainda assim, com elementos reconhecíveis aos olhos de um português do século 21.
Que relíquia se esconde no vaso? |
Refiro-me à óbvia influência da xilogravura (tradicional no nordeste brasileiro) na estética deste jogo. Uma técnica de criação de matrizes em madeira para que sejam usadas na reprodução de gravuras. O Planeta Sinclair não será certamente o lugar para dissertar sobre as origens das xilogravuras. Basta saber que a China foi o primeiro país a talhar gravuras, sendo que a técnica chegou à europa do século 15 por intermédio dos árabes, os mesmos que introduziram a técnica de fabricação de papel uns quatro séculos antes.
Os judeus trouxeram a imprensa da Alemanha e a gravura em madeira tornou-se predominante em Portugal do século 16, a par das gravuras em metal. Não seria de estranhar que tais conhecimentos se transmitissem para o outro lado do oceano. Esta técnica foi a base de um género literário de raiz popular, a Literatura de Cordel, que era difundida por folhetos pendurados em cordéis, para venda ou exposição.
Xilogravura. |
As matrizes de madeira seriam mais fáceis de produzir que as de metal, e proporcionavam uma rápida impressão, divulgação e circulação de poemas, relatos e histórias populares. Mas enquanto que a Literatura de Cordel desapareceu de Portugal no início do século passado aquando do aparecimento da rádio e, pouco depois, da televisão, no Brasil este fenómeno tornou-se vincado, gravado, no traço cultural do nordeste.
Literatura de Cordel (fonte: Diego Dacal) |
Não resisto a confidenciar o seguinte: em parte, sinto que tenho uma pequena, ínfima, reduzida responsabilidade na existência deste Purgatório. Em Julho deste ano, o Paulo estava a apresentar uns mockups conceptuais de uma versão MSX deste jogo (o original havia sido criado em 2016 para o PC), quando o desafiei a fazer o mesmo para o ZX Spectrum. O mote foi lançado. Dito e feito, pouco tempo depois, não só havia mockups, como também um protótipo colorido, curiosamente, diferente dos tons de cidade do pecado (preto, branco e vermelho), algo que o Paulo deve ter decidido mudar a certo ponto do desenvolvimento.
Um outro Purgatório que não viu a Luz! |
Claro que este Purgatório é, todo ele, saído da mente criativa de Paulo. Mas se por um acaso, o leitor entender que este jogo tornou a sua existência insuportável por alguma esdrúxula razão, pode colocar as culpas em mim, já que eu que assumi um pouco o papel de Virgílio ao sugerir esta versão "sinclariana" do Purgatório! No entanto, é importante que não deixe de apoiar mais um criador que faz da criação de jogos a sua vida, adquirindo a versão digital neste link.
Filipe, parabéns. Sua resenha vai além da média de resenhas de video game, que em geral se prendem a detalhes técnicos e da jogabildiade, que claro são importantes, mas não são tudo. Digo que seu texto é um "artigo de análise" de jogo. Já que um dos aspectos que mais foquei neste jogo foram as referências históricas e culturais, sua análise é certeira. Obrigado, me enche de alegria ler textos desse nível sobre meus jogos, é uma parte importante da recompensa por fazer o trabalho.
ResponderEliminarObrigado Paulo, eu não levo muito jeito para rever a parte funcional de um jogo. O que gosto mesmo é do contexto e das referências históricas e/ou pessoais. Eu acredito que um jogo (pelo menos os indies) é uma projeção do(s) criador(es) em função de um estado de espírito num determinado momento temporal. O trabalho que alguém coloca para incorporar estas referências num jogo, de uma forma coesa, é algo que me apraz imenso. Foi o caso deste teu jogo. Eu já conhecia a figura de Lampião (dos tempos em que vivi no Brasil). Gosto da cultura nordestina por várias razões pessoais. Também já apreciava as xilogravuras e, em tempos, li sobre literatura de cordel. Bem sei que há jogos que não se aprofundam nesses caminhos. São apenas diversão pura e dura. Não deixa de ser válida essa fórmula. Mas gosto particularmente de jogos com uma carga cultural de referências. Pelo menos é o que me faz "sintonizar" num jogo. Outras pessoas poderão pensar de forma diferente. Seja como, tudo isto para dizer que gostei bastante do Purgatório, não apenas por ser um jogo tecnicamente competente, mas principalmente porque me trouxe memórias e me fez reapreciar manifestações do "mundo real". Enfim, gostei muito e espero pela próxima obra!
EliminarApenas para acrescentar que se tivesse sido eu a fazer a review, também lhe teria dado um 9. Excelente jogo! :)
EliminarQue venha o terceiro em 2022, não é André? :)
Eliminarsem dúvida ;)
EliminarQue belo texto!!!!
ResponderEliminarParabéns.
Obrigado Alexandre!
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